Ora boa tarde, ou boa noite, não tenho a certeza, tenho medo de abrir os estores e esqueci-me de comprar gasóleo para ligar o gerador. Sem gerador, não há telefonia para ninguém, é mesmo assim. Sem mais rodeios, passo ao tema do dia de hoje: receber chamadas dum número não identificado. E não digam "É tão irritante" enquanto reviram os olhos, que eu bem sei que vos enche o ego, suas rodas quadradas. Se for alguém a gozar connosco, fingimos não ligar nenhuma e não achar piada, mas no fundo sentimo-nos importantes, digam o que disserem. Se for uma chamada mais séria, normalmente é para nos tratarem por "senhor". "Senhor Tiago Carrapatoso, o meu nome é Sandra Silva e estou a ligar da empresa que detém a revista que vossa excelência assina. Estou-lhe a ligar para saber se está satisfeito com os nossos serviços e para ouvir qualquer conselho que tenha para nos dar." Às vezes percebe-se que a pessoa do outro lado é da minha idade, e está a tratar-me como se eu fosse o Belmiro de Azevedo. Até sou parecido com ele em termos de conta bancária, só que como sou canhoto tenho os zeros do lado esquerdo. Também tenho vontade de dizer "Estou satisfeito, só me chateia ter de arrotar o dinheiro todo pela publicação e chegar-me toda amarrotada, porque o carteiro não tem paciência para colocar com delicadeza na caixa do correio, já para não falar que às vezes nem se dá ao trabalho e deixa na prateleira em que se mete as cartas que vêm enganadas, e assim um vizinho esperto usufrui da minha revista gratuitamente enquanto manda um fax ao Marinho Pinto. Quanto a conselhos, acho que a Sandra deveria arranjar outro rato para o computador, que esses ratos de bola fazem um barulho muito irritante para quem está deste lado da chamada. Sim, porque você tem auscultarores enfiados nos abanos de dumbo e não se apercebe, sua anta do deserto. Ah, e tenho só mais um conselho: não masque pastilha enquanto fala comigo, se não se importar. Obrigado." Tem de ser assim, porque se for simpático deixa de me tratar bem e passa a dizer "Tiago, o senhor...", o que é inadmissível. Há ainda aquelas chamadas em que não somos a pessoa pretendida. Há duas situações: um azeiteiro qualquer a dizer "Estou? Carlos?" e quando percebe que não é o Carlos Bilhas pergunta "Então quem fala?". Amigo, se não sou quem você procura, nem que eu fosse o seu irmão gémeo separado à nascença, não lhe ia dizer quem sou. A outra situação é um telefonema formal. "Estou sim, muito boa tarde, estou a falar com o senhor António Silva?". "Não, não sou eu. E já me telefonaram 47 vezes este ano a perguntar por esse senhor.". "Ah, peço imensa desculpa pelo incómodo, não voltará a acontecer. Posso ser-lhe útil em mais alguma coisa?" Esta pergunta costuma ser tentadora, porque não me foi útil em nada, fez-me perder tempo, irritou-me por ser a 48ª chamada para o Toni e apetece-me mandá-la dar uma volta ao bilhar grande. Mas como sou muito bem educado pelos lobos que me acolheram quando tinha duas semanas de idade, respondo "Não, muito obrigado. Até depois de amanhã.", porque já sei que me vão ligar outra vez. Ai meu Deus, já viram as horas? Isto assim não pode ser. A sério, já viram as horas? É que esqueci-me de dar corda ao relógio de bolso e ainda não comprei o gasóleo. Já que não me dizem, vou-me despedir. Adeus, e cuidado com os raios UV do luar. Olha, o meu telefone está a tocar. Estou sim? Não, não sou o senhor António...
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